Artigo: Enfim, um alento ao superendividado

Por Norma Suely Negrão, defensora pública do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Estado de Alagoas

 

 

 

A tão aguardada e muito bem vinda Lei que modifica o Código de Defesa do Consumidor e Estatuto do Idoso e estabelece as Regras de Tratamento e Proteção ao Consumidor SUPERENDIVIDADO 

 

O advento da Pandemia da Covid-19 trouxe para muitas famílias além da crise sanitária um agravamento da crise financeira, que poderá ter um alento com a nova Lei do SUPERENDIVIDAMENTO 

 

 

 

Em 2020, no Brasil, já existiam 60 milhões de endividados, pessoas com algum tipo de inadimplência nos contratos de consumo, e destes, mais de 30 milhões estavam em situação de superendividamento. Agora, em 2021, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a parcela de inadimplentes ficou em torno de 63 milhões, um lastimável recorde histórico, e destes, 94% tem rendimento mensal de até 5 Salários Mínimos. Nesse universo de endividados, 12 milhões são de pessoas mais jovens, que já iniciam suas vidas em situação de endividamento e 6 milhões são de idosos. Da parcela de idosos, 32% são de baixa renda, justamente uma parcela da população com um grau maior de vulnerabilidade.  

 

Aqui em Maceió, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), realizada pelo Instituto Fecomércio de Alagoas, em parceria com a Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), em termos absolutos, do mês de maio para o mês de junho, somaram mais de 189 mil endividados, voltando a crescer o número das famílias endividadas. 

 

 A crise sanitária instalada no mundo está sendo ainda mais grave para muitas famílias brasileiras. Famílias que já entraram na pandemia com dificuldades financeiras, muitos casos em razão das recentes reformas, como a Reforma Trabalhista e a Reforma Previdenciária, outros, pelo desemprego agravado desde o ano passado. Muitos brasileiros já estavam ou se transformaram em Superendividados neste período. Para estes, esse momento de pandemia está ainda mais cruel.  

 

O Projeto de Lei sancionado ontem pelo Presidente da República, que cria a Lei 14.181/2021, já tramitava há 9 anos no Congresso Nacional. Seu texto foi fruto de estudos encomendado pelo então Senador José Sarney a uma Comissão de Juristas para reforma do Código de Defesa do Consumidor. O Projeto de Lei foi protocolado em 2012 e depois de muito clamor dos Órgãos de Defensa do Consumidor de todo o País, muitas manifestações, encontros, monções de apoio, foi aprovada, no começo de junho, pelo Congresso Nacional em suas duas casas legislativas, seguindo para a Sanção presidencial. O Projeto de Lei foi sancionado com vetos.  

 

Era urgente o tratamento legal para a situação do Superendividamento no Brasil. O Estado legislador estava devendo esse tratamento à população brasileira. É regra já antes estabelecida na Constituição Federal, a qual impõe que o Estado promoverá a Defesa do Consumidor, no rol dos direitos fundamentais. A mora legislativa já perdurava muito. 

 

O tema do Superendividamento das pessoas transcende as relações contratuais inadimplidas. Transpassa o Direito do Consumidor. Tem a ver com Dignidade da Pessoa Humana, com manutenção de subsistência de toda uma família, de mínimo existencial, de qualidade de vida. 

 

O Tratamento proposto pelo texto legal prevê instrumentos para o resgate da pessoa humana de volta ao convívio na sociedade, pessoas que estavam já há muito segregadas, sem a possiblidade de um mínimo existencial para uma vida com dignidade, em razão do acúmulo de dívidas. A Lei estabelece a possiblidade de programa de pagamento para a quitação da dívida com os credores, preservando o chamado “mínimo existencial” para o consumidor e sua família.  

 

O fenômeno do Superendividamento é um tema muito sensível para a Defensoria Pública porque envolve a vida de milhares de pessoas, que por diversas razões se somam e se potencializam, se encontram em uma situação de penúria porque perderam as condições de gerenciar suas próprias vidas, de manutenção da vida com o mínimo de dignidade.  

 

O Superendividamento é um grau tal de endividamento no qual as pessoas não são mais capazes sequer de gerenciar seu dia a dia ou de pagar suas contas. Estas pessoas estão segregadas da sociedade e do mercado de consumo, não têm mais condições de participar da vida como cidadão, de fazer suas escolhas. A pessoa cai numa espiral de dívida, de forma que uma dívida leva a outra, que leva a outra, que leva a outra. Essa situação a impossibilita de quitar suas dívidas de consumo, seus rendimentos já não fazem frente ao pagamento das dívidas e, ainda assim, além de não cumprirem com exatidão com seus débitos, não conseguem suprir as mínimas necessidades de vida digna para si ou sua família. Não há mais como sobreviver com um acúmulo de dívidas. Desencadeando toda uma tribulação de ordem pessoal e familiar. Doenças físicas e mentais e desagregação familiar são só alguns exemplos.  

 

Hoje temos muito claro o círculo do superendividamento. O assédio na oferta do crédito ao consumidor é uma das práticas mais ultrajantes e que mais causam danos, principalmente aos mais idosos. O nível de assédio na oferta do crédito ao consumidor idoso é insuportável. Em qualquer momento do dia, em qualquer plataforma. Uma oferta irresponsável com informações precárias, uma publicidade agressiva e enganosa, apenas tornam o consumidor ainda mais exposto e vulnerável. Muitos, depois de uma vida de trabalho e na esperança de uma aposentadoria com tranquilidade, são importunados diuturnamente com seus dados pessoais sendo divulgados e compartilhados de forma abusiva para oferta de crédito. 

 

Pode parecer paradoxal. Mas, muitos consumidores se endividam para não ficar endividados. Muitos fazem novos empréstimos para pagar dívidas anteriores. Se superendividam renovando empréstimos ad eternum. Seu proveito pessoal com o crédito já se tornou um tão pequeno diante do montante que já desprendeu para quitar a dívida. O maior exemplo de boa-fé do consumidor é quando caem no golpe da renovação do crédito pra ficar com um “troco” e muitos já não recebem qualquer quantia a mais de proveito próprio. Quantas simulações, quantas retenções indevidas são feitas pelos bancos nas contas dos consumidores, em uma auto execução, não permitindo o acesso do consumidor aos valores em depósitos na sua conta corrente. Quantas instituições financeiras, na tentativa de burlar o limite do consignado, oferecem desmedidamente o crédito pessoal, gerando e agravando o endividamento do consumidor.  

 

Hoje se adere aos contratos de crédito bancário apenas respondendo “sim” a mensagens de celular, de uma oferta de crédito não solicitada. Completamente desconhecidos os termos da contratação, omitidos, ou, na maioria das vezes, simulados com o propósito de enganar. Uma das práticas mais revoltantes, que inclusive se agravou na pandemia, é a instituição financeira, detendo e utilizando indevidamente os dados pessoais do consumidor, sem sua solicitação anterior, ou sequer sua anuência, “formalizar” contrato de empréstimo à revelia do consumidor, depositando determinada quantia em sua conta corrente, e já fazendo os descontos das parcelas para quitação do “suposto empréstimo”. Quantas dificuldades surgem na vida desse consumidor que recebeu em sua conta corrente essa quantia sem seu conhecimento, principalmente se sua conta estiver negativada ou se ele estiver devendo no banco ou no cartão de crédito.  

 

 

De todos, o pior produto bancário é o chamado “cartão de crédito consignado”, muitos destes contratos têm gerado graves danos ao consumidor. Simulavam um empréstimo ao consumidor, e sem que o consumidor tivesse conhecimento da real situação, a instituição financeira formalizava um “saque no cartão”. Ou seja, o consumidor, de boa-fé, entendia o valor recebido com empréstimo e para quitação em determinado prazo, no entanto, a situação formalizada a sua revelia pela instituição financeira era um “saque no cartão de crédito”, com as regras atinentes a essa operação. Ou seja, ou se paga todo o valor na próxima fatura, quintado o saque, ou o valor não quitado vai gerar os juros do rotativo do cartão de crédito, que em geral, são muito caros. Resultado, a dívida vira impagável, mesmo o consumidor entendendo que está quitando mês a mês, pois as parcelas do pagamento estão sendo debitadas de seu contracheque de forma contínua. 

 

Existe, sim, a ausência de preparo do consumidor para o uso do crédito, situação que ainda é agravada pela falta do cumprimento do dever de informação da instituição financeira, falta de clareza nos termos do contrato. Contratos bancários são contratos complexos, exige do seu tomador um grau de conhecimento e cuidado com o comprometimento de sua renda. A falta de educação financeira gera a busca irresponsável do crédito, incita o consumo muitas vezes desnecessário e leva ao endividamento em razão de muitas vezes ser contratado um crédito caro. A regra é simples, quanto mais fácil e sem garantia for o acesso ao crédito, mais caro ele será.  

 

Muitos são seduzidos pelas armadilhas do crédito fácil, imediato, instantâneo, sem ter o cuidado para avaliar e escolher dentre as mais diversas linhas de crédito existente no mercado a que seja menos onerosa. E essa ausência de preparo para lidar com o uso do crédito, sem conhecer suas reais necessidades mediatas, apenas por apelos de pertencimento à determinado grupo social, sem qualquer planejamento, comprometendo seus rendimentos por muitos e muitos anos, não trazendo à lembrança de que com o passar do tempo, novas necessidades pessoais vão surgir, por certo contribuirá para a situação de superendividamento. Mas essa responsabilidade, não se pode olvidar, tem que ser dividida com a instituição bancária, pela oferta irresponsável de crédito sem análise de condições financeiras do consumidor, da sua capacidade de quitar suas dívidas.  

 

O endividamento é uma questão individual, de dignidade humana, mas gera também inúmeras consequências no âmbito familiar. E com o enfraquecimento do poder de compra das famílias perde toda a sociedade e a própria economia, já que nossa economia está alicerçada no consumo das famílias. A Lei trata de instrumentos para o resgate dessas pessoas. Não se fala em perdão da dívida, que fique muito claro para todos. Se fala em plano de recuperação financeiro, como se dá com as empresas. Propõe estabelecer regras para um plano de pagamento da dívida, fazendo o consumidor voltar a ter a possibilidade de viver com um mínimo de dignidade. O resultado não é só o resgate da pessoa do consumidor à dignidade, ganha a sociedade com a recuperação da economia.  

 

 

A questão da normatização do tratamento e proteção ao superendividado já tardou, há muito tempo, mas chega, ainda, em hora de trazer alento a muitos brasileiros.